terça-feira, 18 de novembro de 2014

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Está pacificado: “somos o que somos”, respiro.
Umas tantas existências que sintetizam assombros e insignificâncias numa mesma medida imensurável. Somos história e cotidiano que se fundem, no instante que passa.
“Qual é a utilidade do que escrevo?” Me pergunto. “Exercícios cerebrais”, respondo e calo, pra refletir sobre a utilidade.
Subvertendo o útil, mas me dedicando ao inteiro, ao humano e ao honesto, espero um dia proporcionar algo mais bonito, que não sendo útil ou comercial, também não seja fruto de um narcisismo histérico e disfarçado de altruísta.
Aprender mais dos nossos limites, das fronteiras natas e das inventadas, de modo a ir subvertendo-as, todas e cada uma delas.

Do eu pro nós, um primeiro passo.

sábado, 13 de setembro de 2014

Para uma amiga que subirá numa tribuna internacional

Vai, e leva contigo cada uma das mulheres latino-americanas
Todas as mulheres silenciadas do mundo falam pela tua voz quando dizes
Quem somos, de onde viemos, o que temos vivido ao longo dos anos, dos séculos.

Vai sim, e diz praqueles ouvidos atentos que somos capazes de analisar a conjuntura,
De propor mudanças profundas, de reinventar um sistema
Porque vivemos na pele cada uma de suas contradições.

Herdamos um passado sofrido, de colonização, exploração, humilhação.
Somos bisnetas das escravas, netas das exploradas, filhas das sofridas
Agora temos um pouco de voz.
E no entanto, mais do que vitimas, nossa realidade nos tornou protagonistas de uma nova ordem.

Tu nos representa, Jana!
Pela tua sinceridade e, sobretudo, pela tua sensibilidade absurda.
Pela tua politização, pelas tuas convicções, por teres lado em qualquer luta
E por não seres razoável.


“A mulher razoável se adapta ao mundo.
A não razoável insiste em adaptar o mundo a ela.
Toda mudança então, depende, das mulheres não razoáveis.”

Para uma irmã de classe



Não me diga que você é nada.

Se não sabe me dizer por que vive, diga-me ao menos contra o que vive.
Contra o quê? Do que você foge? Do que você corre? Do que você tem medo? Contra quem despenderia o soco mais forte da sua vida? O que você apagaria da sua existência, sinceramente? Contra o que você se levanta, a cada dia?
Quer se conhecer, enfrente-se! Observe as imperfeições da sua nudez espiritual. Cada uma de suas fraquezas e cada uma de suas dores. Você não pode passar a vida correndo, fugindo de si. Um dia há de apanhar. Outro dia há de aprender a bater. E por fim, vais encarar a estrada aberta da vida com a dignidade de uma escrava que não ganha de presente a sua liberdade mas a conquista, com a sua fuga, com as suas próprias pernas e com a sua coragem. Você não é covarde por brigar por ser quem realmente é.
Nós tivemos que remover pedras antes mesmo de aprender a caminhar. Somos mulheres da estrada. O mundo, sempre hostil conosco, só nos abria uma porta quando existiam interesses torpes. Fomos reduzidas. Forçadas a ser menos do que podíamos. E agora, reclamar nos parece futilidade. Você me entende? Não temos o direito de apenas reclamar. Enfrentar foi e ainda é a nossa sina. Do passado carrego uma porção de forças e de fraquezas.  Sinto amor em mim e sou capaz de enxergá-lo ao meu redor. Todo o meu afeto, minha perspectiva e minha sensibilidade não fazem de mim uma flor, mas uma fortaleza inteira.
Se lhe parece difícil demais viver, se vai deixar de buscar as respostas que cobrem os buracos da sua história, abrir mão de decidir que rumo tomar, e ir, você definhará. Num ciclo infindável, irá diminuir até voltar a ser não mais do que poeira cósmica. Eles pisarão em você viva. Nem te perceberão pisoteada. Seguirão o rumo.
No entanto, se o destino de tapete te parece indigno, te prepara para a batalha. Te veste com a roupa que mais te dá segurança, te arma com as tuas convicções, e vai pra rua, buscar o que é teu, mulher.
Marca um encontro com o teu passado. Passeia por ele com a elegância de quem sabe por onde anda. Surpreenda-o e a si mesma. Te tornaste alguém capaz de enfrentar qualquer coisa, talvez esteja quase pronta pra responder à pergunta mais difícil da sua vida. Aquela pergunta, impronunciável, que lhe ronda desde a adolescência. Você ainda não sabe que livro vai escrever, nem se terá filhos, nem se exercerá alguma profissão e será útil para o lucro de algum capitalista. Você ainda não tem certeza se vai militar pra todo o sempre numa organização e empenhar suas noites em uma ilusão desgastante e cruel, mas que a preencherá.
Você sabe que não sentirá prazer ao lado de uma única pessoa, para sempre. Sabe pois , o que não se pode negar, é que isso é demasiado fantasioso, e que essa fantasia não lhe serve.
Ninguém, além de você mesma, é claro, é dona do seu prazer. Nenhum homem, por mais esforços que faça, será dono dos seus desejos, das suas angustias. Ninguém terá todas as respostas para as tuas perguntas. Não te iludas mais, minha irmã.
O amor que existe dentro de você deve ser dedicado a você mesma, em primeiro lugar. Toque-se e conheça a sua genitália inteira. Repara como os seus mamilos são bonitos, porque únicos. Perceba como o seu cabelo, ou a falta dele, lhe cai bem – exatamente do jeito que é. Veja as cores dos seus olhos, entenda como eles se movem quando você sorri. Perceba a beleza que o vento é incapaz de bagunçar; que tempo é incapaz de matar em você. Você é, inevitavelmente, melhor a cada instante.
Respeite os seus instintos. Force os seus limites. Te atreve a mudar todas as coisas descabidas que te atrapalham o caminho e interrompem a vida de tantas. Vamos! Não renuncia o teu prazer. Aprenda a dizer não. E grite: NÃO! Diga essa palavra quantas vezes for necessário, até que ela se converta num escudo. A tua palavra tem valor, mulher, porque o teu desejo tem valor. Um valor inestimável.
É claro que os porcos que te rondam, que te farejam, que te cortejam, não enxergam o teu valor. Querem te consumir. Em nome de seu tesão grotesco, te apunhalam, te contaminam com as suas doenças, te enchem de dor, de culpa, de nojo. Eles não são dignos e nem capazes de saciar teus desejos. Tu é quem deve comandar a tua vida, no rumo dos teus desejos. E pra isso, você precisa se conhecer.
Saber do que gosta, do que odeia, como se sente livre, o que e quem te faz melhor. Quais as drogas e as plantas que te abrandam a tensão, que livros e que canções te preenchem, quando o vazio te acomete.
 O feminismo, há certo tempo, passou a me constituir. E tudo o que vejo, tudo o que escuto, tudo o que sinto, passa pelo meu ser biologicamente fêmea e socialmente mulher. Nós mulheres, somos todas distintas – únicas -, mas somos todas irmãs de destino. Padecem muito mais, no entanto, as que passam a vida vendendo o seu trabalho a preço baixo, vagando em busca de uns trocados. Essas mulheres, como minha avó, minha mãe e tantas de nós, peregrinaram existências em busca de dignidade, e carregam o mundo nas costas, como destino.


O que justifica a sororidade não é uma suposta fraqueza que nos é comum. Nenhuma mulher é débil por ser mulher. O que me desperta, honestamente, a sororidade é a similar força que tivemos que fazer para chegar até aqui. E não retrocederemos, se andarmos juntas.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

A copa mundo na rua da nossa casa


Moro na Borges, num assentamento urbano que fica na famosa escadaria. A copa em porto alegre ocorre no estádio beira rio, que fica numa avenida que é a continuação da nossa, a um quilômetro daqui. Sou alheia ao futebol. Não vi nenhum jogo da copa. Sei de alguns resultados porque vivo em sociedade e porque faço parte daquela gente que sempre torce pra um país latino, africano ou asiático, contra os ianques e os europeus, pelo gosto de poder derrotar, ao menos simbolicamente, os colonizadores e os imperialistas.
Fui comprar café e pão nessa manhã, do outro lado da rua, e me caiu a ficha. Nossa rua está bloqueada, porque hoje, novamente, milhares de cidadãos e cidadãs do mundo passarão por aqui, pela calçada de casa. 
Semana passada, passou uma marcha imensa de holandeses festeiros. Outro dia ouvi um som intenso de surdo, e uns gritos firmes de guerra, achei que fosse outra multidão chegando, mas não. Era uma meia dúzia de libaneses, com uma latente empolgação, muito séria e aguerrida. Ontem à noite a nossa calçada estava cheia de uruguaios resplandecendo uma alegria linda, emocionada, contagiante, depois do resultado do jogo contra a Itália, 1x0. Hoje é o dia dos argentinos, barulhentos e desconfiados, passarem por aqui. Acho que se sentem em território inimigo, chegam imponentes, reivindicando o mestre Maradona com aqueles cantos típicos Dale Dale ô... Pela nossa avenida também desfilou indignação e terror. As marchas contra a copa ocorrem todos os dias de jogo. Denunciam o que sofre o povo de todo país que recebe um mundial, pra se adequar às exigências homéricas e esdrúxulas da Fifa. Atrás da gente indignada, passa o choque, com aquele passo marcado. Coletes, cassetetes e escudos da covardia vestem os militares que seguem a marcha das pessoas com seus cartazes. Atrás do choque passa a cavalaria armada. Atrás da cavalaria, os camburões. Atrás dos camburões, as ambulâncias. Um efetivo exagero que causa mais medo do que segurança na gente.
Pela rua da nossa casa passa um pouco da copa do mundo, e as suas intrínsecas contradições. Beleza e medo, festa e desigualdade, diversidade e preconceito, machismo e amor, covardia e alegria... E a estranha sensação de sermos mundo.