segunda-feira, 18 de maio de 2015

Sobre fumar

Eu mesma não fumo.  Como haveria de fumar se desde sempre odeio os cigarros como odeio os ratos dos esgotos? Quem fuma é a minha frustração por não ser uma grande musicista; é a minha incapacidade de escrever de forma ordenada um romance épico; quem fuma é a minha saudade dos mortos, essa solidão gregária que se aprofunda quando estou entre vocês.

Eu mesma não fumo. Como haveria de tragar essa fumaça amarga que certamente ferra meus pulmões? Quem fuma é a minha falta de dinheiro para viajar pra cuba, espanha, guiné, grécia ou coreia do norte; quem fuma é a minha tristeza por não ser atriz, nem pintora, nem fotógrafa, nem nada.

Eu mesma não fumo. Como haveria de fumar essas substâncias todas que conduzem a uma morte lenta, se eu mesma sou incapaz – por questão da razão – de suicidar-me? Quem fuma é a sólida vontade de matar em mim tudo o que eu não sou, mas gostaria. O cigarro, meu inimigo mortal, se fez amigo das minhas dores e o meu lado feio – que tento esconder porque é só e frustrado – tem tido uma vontade cotidiana de fumar..

Mas eu mesma, o lado restante dessa criatura amarga como a nicotina, odeia cada tragada como odeia o mais asqueroso rato saído do mais fétido esgoto da maior capital do mundo.

Fumar é uma atitude radical e, ao mesmo tempo, uma conduta besta que pratico quando o desespero do vazio me acomete.  Fumar baixa a minha autoestima objetiva e subjetivamente, e ainda assim o faço. Fumo e lembro que odeio cigarros. Fumo e sinto que fumar me faz mal. E, sentindo o mal, respiro a fumaça e trago fundo, pra perto das minhas dores existenciais a fumaça, companheira maldita que, num segundo, me preenche de sujeira e me livra do vazio.

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terça-feira, 7 de abril de 2015

De saída.

Me afastei da militância partidária, no PT, há um ano. Me filiei em 2012 e me desfilio em 2015. Primeiro, me retirei das instâncias de coordenação que fazia parte, e logo depois da vida partidária, de um modo geral. E nesse processo entendi que o meu afastamento progressivo era fruto de uma profunda insatisfação pessoal e política, se é que as coisas se apartam assim. Por um lado por ser mulher e não poder mais suportar assédios de distintas ordens - conviver no partido com ex-namorado violento, deputados abusados e tarados, dirigentes machos que, no auge da sua posição política, não tinham tempo pra escutar com respeito opiniões de mulheres dirigentes, desde os seus lugares de não privilégio. Coisas corriqueiras, na política como na vida, mas coisas que aprendi, a duras penas, a desnaturalizar e não aceitar quieta.  Por outro lado, me afastei por compreender que um partido representante da classe trabalhadora precisa de uma estratégia real, um caminho traçado com teoria revolucionária, luta cotidiana e povo, pra ter condições de ocupar com responsabilidade esse lugar histórico (de vanguarda, por assim dizer).

Elementos ausentes num PT que “luta” sistematicamente por reeleições, que em muito pouco opina nos mandatos que elegeu, que se faz refém, mais a cada dia, do grande capital e, na mesma proporção, se afasta dos compromissos que o fundaram. Se não serve como agente histórico, que disputa as estruturas tendo em vista um rumo socialista, serve como legenda de aluguel. Serve pra que as megaempresas, que esgotam as pessoas e o mundo, elejam sua gente de confiança. Ou alguém se ilude que um deputado federal que recebe 5 milhões de reais de uma empresa terá um compromisso visceral com as demandas populares?

O capitalismo, com certo grau de autoconsciência e estratégia, que se apropria da cultura, da história e até dos desejos humanos, também se apropria das ferramentas feitas pela resistência para o confrontar. E pra saber o quanto resta de subversivo ao PT não precisa ser especialista. Com um pouco de boa vontade se percebe que a ordem engoliu o rebelde.

O que queria mesmo dizer é que, ao contrário do que dizem, não me afastei do partido porque sou recalcada, fraca, covarde, louca, desqualificada, alienada ou qualquer outro adjetivo associado a mim e às mulheres que berram contra o machismo, onde estão. Me afastei porque, racionalmente, não faz sentido suportar tantas contradições, defender um partido que esqueceu a que veio, um governo meio personalista meio fantoche, só pelo pragmatismo, pela disciplina ou pela fé. O grande aprendizado da vida, ao menos até hoje, acho que foi justamente o de jamais renunciar a minha capacidade e o meu direito de pensar.


terça-feira, 18 de novembro de 2014

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Está pacificado: “somos o que somos”, respiro.
Umas tantas existências que sintetizam assombros e insignificâncias numa mesma medida imensurável. Somos história e cotidiano que se fundem, no instante que passa.
“Qual é a utilidade do que escrevo?” Me pergunto. “Exercícios cerebrais”, respondo e calo, pra refletir sobre a utilidade.
Subvertendo o útil, mas me dedicando ao inteiro, ao humano e ao honesto, espero um dia proporcionar algo mais bonito, que não sendo útil ou comercial, também não seja fruto de um narcisismo histérico e disfarçado de altruísta.
Aprender mais dos nossos limites, das fronteiras natas e das inventadas, de modo a ir subvertendo-as, todas e cada uma delas.

Do eu pro nós, um primeiro passo.

sábado, 13 de setembro de 2014

Para uma amiga que subirá numa tribuna internacional

Vai, e leva contigo cada uma das mulheres latino-americanas
Todas as mulheres silenciadas do mundo falam pela tua voz quando dizes
Quem somos, de onde viemos, o que temos vivido ao longo dos anos, dos séculos.

Vai sim, e diz praqueles ouvidos atentos que somos capazes de analisar a conjuntura,
De propor mudanças profundas, de reinventar um sistema
Porque vivemos na pele cada uma de suas contradições.

Herdamos um passado sofrido, de colonização, exploração, humilhação.
Somos bisnetas das escravas, netas das exploradas, filhas das sofridas
Agora temos um pouco de voz.
E no entanto, mais do que vitimas, nossa realidade nos tornou protagonistas de uma nova ordem.

Tu nos representa, Jana!
Pela tua sinceridade e, sobretudo, pela tua sensibilidade absurda.
Pela tua politização, pelas tuas convicções, por teres lado em qualquer luta
E por não seres razoável.


“A mulher razoável se adapta ao mundo.
A não razoável insiste em adaptar o mundo a ela.
Toda mudança então, depende, das mulheres não razoáveis.”

Para uma irmã de classe



Não me diga que você é nada.

Se não sabe me dizer por que vive, diga-me ao menos contra o que vive.
Contra o quê? Do que você foge? Do que você corre? Do que você tem medo? Contra quem despenderia o soco mais forte da sua vida? O que você apagaria da sua existência, sinceramente? Contra o que você se levanta, a cada dia?
Quer se conhecer, enfrente-se! Observe as imperfeições da sua nudez espiritual. Cada uma de suas fraquezas e cada uma de suas dores. Você não pode passar a vida correndo, fugindo de si. Um dia há de apanhar. Outro dia há de aprender a bater. E por fim, vais encarar a estrada aberta da vida com a dignidade de uma escrava que não ganha de presente a sua liberdade mas a conquista, com a sua fuga, com as suas próprias pernas e com a sua coragem. Você não é covarde por brigar por ser quem realmente é.
Nós tivemos que remover pedras antes mesmo de aprender a caminhar. Somos mulheres da estrada. O mundo, sempre hostil conosco, só nos abria uma porta quando existiam interesses torpes. Fomos reduzidas. Forçadas a ser menos do que podíamos. E agora, reclamar nos parece futilidade. Você me entende? Não temos o direito de apenas reclamar. Enfrentar foi e ainda é a nossa sina. Do passado carrego uma porção de forças e de fraquezas.  Sinto amor em mim e sou capaz de enxergá-lo ao meu redor. Todo o meu afeto, minha perspectiva e minha sensibilidade não fazem de mim uma flor, mas uma fortaleza inteira.
Se lhe parece difícil demais viver, se vai deixar de buscar as respostas que cobrem os buracos da sua história, abrir mão de decidir que rumo tomar, e ir, você definhará. Num ciclo infindável, irá diminuir até voltar a ser não mais do que poeira cósmica. Eles pisarão em você viva. Nem te perceberão pisoteada. Seguirão o rumo.
No entanto, se o destino de tapete te parece indigno, te prepara para a batalha. Te veste com a roupa que mais te dá segurança, te arma com as tuas convicções, e vai pra rua, buscar o que é teu, mulher.
Marca um encontro com o teu passado. Passeia por ele com a elegância de quem sabe por onde anda. Surpreenda-o e a si mesma. Te tornaste alguém capaz de enfrentar qualquer coisa, talvez esteja quase pronta pra responder à pergunta mais difícil da sua vida. Aquela pergunta, impronunciável, que lhe ronda desde a adolescência. Você ainda não sabe que livro vai escrever, nem se terá filhos, nem se exercerá alguma profissão e será útil para o lucro de algum capitalista. Você ainda não tem certeza se vai militar pra todo o sempre numa organização e empenhar suas noites em uma ilusão desgastante e cruel, mas que a preencherá.
Você sabe que não sentirá prazer ao lado de uma única pessoa, para sempre. Sabe pois , o que não se pode negar, é que isso é demasiado fantasioso, e que essa fantasia não lhe serve.
Ninguém, além de você mesma, é claro, é dona do seu prazer. Nenhum homem, por mais esforços que faça, será dono dos seus desejos, das suas angustias. Ninguém terá todas as respostas para as tuas perguntas. Não te iludas mais, minha irmã.
O amor que existe dentro de você deve ser dedicado a você mesma, em primeiro lugar. Toque-se e conheça a sua genitália inteira. Repara como os seus mamilos são bonitos, porque únicos. Perceba como o seu cabelo, ou a falta dele, lhe cai bem – exatamente do jeito que é. Veja as cores dos seus olhos, entenda como eles se movem quando você sorri. Perceba a beleza que o vento é incapaz de bagunçar; que tempo é incapaz de matar em você. Você é, inevitavelmente, melhor a cada instante.
Respeite os seus instintos. Force os seus limites. Te atreve a mudar todas as coisas descabidas que te atrapalham o caminho e interrompem a vida de tantas. Vamos! Não renuncia o teu prazer. Aprenda a dizer não. E grite: NÃO! Diga essa palavra quantas vezes for necessário, até que ela se converta num escudo. A tua palavra tem valor, mulher, porque o teu desejo tem valor. Um valor inestimável.
É claro que os porcos que te rondam, que te farejam, que te cortejam, não enxergam o teu valor. Querem te consumir. Em nome de seu tesão grotesco, te apunhalam, te contaminam com as suas doenças, te enchem de dor, de culpa, de nojo. Eles não são dignos e nem capazes de saciar teus desejos. Tu é quem deve comandar a tua vida, no rumo dos teus desejos. E pra isso, você precisa se conhecer.
Saber do que gosta, do que odeia, como se sente livre, o que e quem te faz melhor. Quais as drogas e as plantas que te abrandam a tensão, que livros e que canções te preenchem, quando o vazio te acomete.
 O feminismo, há certo tempo, passou a me constituir. E tudo o que vejo, tudo o que escuto, tudo o que sinto, passa pelo meu ser biologicamente fêmea e socialmente mulher. Nós mulheres, somos todas distintas – únicas -, mas somos todas irmãs de destino. Padecem muito mais, no entanto, as que passam a vida vendendo o seu trabalho a preço baixo, vagando em busca de uns trocados. Essas mulheres, como minha avó, minha mãe e tantas de nós, peregrinaram existências em busca de dignidade, e carregam o mundo nas costas, como destino.


O que justifica a sororidade não é uma suposta fraqueza que nos é comum. Nenhuma mulher é débil por ser mulher. O que me desperta, honestamente, a sororidade é a similar força que tivemos que fazer para chegar até aqui. E não retrocederemos, se andarmos juntas.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

A copa mundo na rua da nossa casa


Moro na Borges, num assentamento urbano que fica na famosa escadaria. A copa em porto alegre ocorre no estádio beira rio, que fica numa avenida que é a continuação da nossa, a um quilômetro daqui. Sou alheia ao futebol. Não vi nenhum jogo da copa. Sei de alguns resultados porque vivo em sociedade e porque faço parte daquela gente que sempre torce pra um país latino, africano ou asiático, contra os ianques e os europeus, pelo gosto de poder derrotar, ao menos simbolicamente, os colonizadores e os imperialistas.
Fui comprar café e pão nessa manhã, do outro lado da rua, e me caiu a ficha. Nossa rua está bloqueada, porque hoje, novamente, milhares de cidadãos e cidadãs do mundo passarão por aqui, pela calçada de casa. 
Semana passada, passou uma marcha imensa de holandeses festeiros. Outro dia ouvi um som intenso de surdo, e uns gritos firmes de guerra, achei que fosse outra multidão chegando, mas não. Era uma meia dúzia de libaneses, com uma latente empolgação, muito séria e aguerrida. Ontem à noite a nossa calçada estava cheia de uruguaios resplandecendo uma alegria linda, emocionada, contagiante, depois do resultado do jogo contra a Itália, 1x0. Hoje é o dia dos argentinos, barulhentos e desconfiados, passarem por aqui. Acho que se sentem em território inimigo, chegam imponentes, reivindicando o mestre Maradona com aqueles cantos típicos Dale Dale ô... Pela nossa avenida também desfilou indignação e terror. As marchas contra a copa ocorrem todos os dias de jogo. Denunciam o que sofre o povo de todo país que recebe um mundial, pra se adequar às exigências homéricas e esdrúxulas da Fifa. Atrás da gente indignada, passa o choque, com aquele passo marcado. Coletes, cassetetes e escudos da covardia vestem os militares que seguem a marcha das pessoas com seus cartazes. Atrás do choque passa a cavalaria armada. Atrás da cavalaria, os camburões. Atrás dos camburões, as ambulâncias. Um efetivo exagero que causa mais medo do que segurança na gente.
Pela rua da nossa casa passa um pouco da copa do mundo, e as suas intrínsecas contradições. Beleza e medo, festa e desigualdade, diversidade e preconceito, machismo e amor, covardia e alegria... E a estranha sensação de sermos mundo.


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Vila Liberdade




Estou tendo a oportunidade de acompanhar a luta da comunidade da Vila Liberdade, incendiada no último domingo, localizada exatamente ao lado do novo estadio do grêmio. A Arena, grande empreendimento da OAS, aquela mesma empreiteira que financiou em 550 mil a campanha do atual prefeito. A história dos reais motivos do incêndio até hoje restou mal contada e o corpo de bombeiros levou 7 horas para “apagar” o fogo, que na verdade consumiu tudo enquanto o efetivo assistia, com os caminhões sem água, no local. 

Cerca de 90 famílias perderam tudo. Lhes restou a vida e a roupa do corpo. Uma parte da comunidade foi levada para uma escola-abrigo, onde recebe toda a assistência necessária e muita doação (a Força sindical atua como voluntária no local, e cumpre um papel que o poder público deveria realizar). Outra parte das famílias foram para casas de parentes e uma terceira parte, o maior grupo, acampou em frente à área que lhes pertence, no leito da Voluntários da Pátria, ao lado da Free Way. Esse grande grupo de pessoas está completamente desassistido pelo poder público, até esta madrugada. Até hoje nem um assistente social ou agente de saúde passou por lá. Por outro lado a guarda municipal e a brigada militar estão 24 horas por dia fazendo “a segurança do local”.


As principais reivindicações do povo que ocupa a área são: a garantia expressa e segura de que serão reassentadas no mesmo local em que viviam; a construção de casas de emergência habitáveis, que contemplem as especificidades das famílias (que têm carrinhos, cavalos, carroças...); e assistência social, que garanta, de imediato, que as famílias tenham alguma dignidade, mesmo estando no leito da faixa. Esses últimos dias em Porto Alegre a sensação térmica chegou a 50º ao meio dia, e no local todas as pessoas estão diretamente expostas ao sol. Elas contam somente com a solidariedade das gentes, das empresas e dos sindicatos que conseguem entregar suas doações, tendo em vista que o município têm orientado todas as doações exclusivamente pra escola, já abarrotada de roupa, água, alimentos. Há sindicatos, advogados populares, promotores, vereadores e deputados de esquerda interessados no tema, prestando algum auxílio e cobrando providências do município. 




Há alguns voluntários contribuindo com a produção de alimentos e com a organização do acampamento. A prefeitura ainda não se comprometeu efetivamente com nenhuma das reivindicações das que já citei, e neste domingo, dia 4, na escola Giudice do Humaitá haverá assembléia (aberta para a população em geral) para apresentação do projeto habitacional, com a presença do prefeito Fortunatti (PDT), em tese. A expectativa é de que o prefeito se comprometa, assinando um termo de compromisso com as reivindicações da comunidade, e de que hajam casas de emergência suficientes, construídas para as famílias, o mais breve possível. As pessoas que estão na luta são exemplos de força, de coragem, de resistência. Inclusive as crianças. Alguns, algumas, trabalham pelo coletivo sem parar, e dividem até o que lhes falta. Já são muitas as entidades envolvidas e, certamente, não aceitaremos qualquer outro destino para as famílias, além do que elas decidirem.


Aprendemos nesses dias com as famílias sobre a necessidade de se organizar pra sobreviver nesse sistema - e para enfrentá-lo, sobre possibilidade de recomeçar sempre, ainda que do zero, e que só a luta muda a vida.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Marcha das Vadias, das Mulheres Livres, de um novo tempo.


A Marcha das Vadias passou aqui por Porto Alegre, alegrando a cidade e a esperança das mulheres subversivas que sonham com dias de liberdade. Ontem vivemos um dia de liberdade. Uma marcha enorme, colorida, animada, recebida com aplausos, diversos pedidos de fotos, sorrisos emocionados, vibrações e uns chingamentos conseradores também, afinal estamos falando de Porto Alegre, RS. Quanta verdade senti naqueles gritos de ordem, nos corpos e nos cartazes que falavam dos nossos desejos; nos sorrisos que são, sem dúvida, a mais bonita curva que um corpo pode ter.

As críticas que vem são de toda ordem. Uns e outras dizem que a marcha é pequeno-burguesa, que ela não conversa com a realidade dos e das trabalhadoras que mais sofrem as mazelas do sexismo. O que faz algum sentido. A marcha teve mesmo esse aspecto, essa cara. Faltou a presença das vadias pobres, das imensas periferias portoalegrenses, que certamente são as que mais penam com o conservadorismo machista, com a desigualdade, com a covardia, com a miséria moral da nossa sociedade patriarcal.

 Porém, as ruas cheias calam quaquer argumento vazio.

O que aprendemos: que o facebook ajuda a mobilizar pra valer, que ele por si só não basta, que uma marcha pode marcar a história, mas é pouco pra mudar a correlação de forças, que a luta não é somente uma festa.

Que a irreverência nos toca, provoca, sensibiliza. Que a criatividade é um elemento de primeira necessidade para as lutas políticas dos nossos tempos. Que o povo tem muito poder. Que as mulheres são altamente capazes de mandar em suas vidas, em seus corpos, na política, no que for. E que  só a organização é capaz de transformar fundo a realidade.

Um grande abraço nas vadias, nos cornos, nas putas, nas lésbicas, nas bixas, e em todas aquelas pessoas que a partir de agora celebrarão a contraditória alegria de serem o que são.


segunda-feira, 7 de maio de 2012

A Universidade Privada no Brasil de Hoje


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73% dos estudantes universitários brasileiros estão em universidades privadas, comunitárias ou confessionais. E este fenômeno, que passa desapercebido, tem consequências no processo de desenvolvimento do país. Em que pese o acesso ao ensino superior se dê de forma muito mais simples nessas instituições, a realidade da universidade privada brasileira e o papel que ela cumpre podem ser caracterizados como desserviços na perspectiva da construção de uma sociedade solidária, democrática e economicamente justa.

Nossa geração presenciou uma série de mudanças no direcionamento de políticas de acesso ao ensino superior brasileiro, a partir do governo Lula, tais como o Prouni (Programa universidade para Todos), a UAB (Universidade Aberta do Brasil), o Reuni (Programa de reestruturação e expansão das Universidades Federais), a construção de 14 novas universidades e de mais de 100 novos campi espalhados pelos interiores do país, além da aprovação de uma política de ações afirmativas e outras iniciativas sem precedentes históricos.

Nos últimos dez anos dobrou a proporção dos jovens matriculados no ensino superior. E, quem tiver um pouco de memória ou curiosidade para pesquisar, perceberá a diferença abissal entre a realidade e o passado próximo, quando o estado brasileiro estava em mãos tucanas, sob o comando neoliberal. Nesse período da nossa história em que a classe trabalhadora padeceu como nunca, com salários ínfimos, à margem do consumo e sem políticas públicas de inclusão e de garantias fundamentais, a ideia de fazer um curso superior passava muito longe do projeto de vida da juventude que, com algumas excessões, não fugia muito do “caminho natural” de tentar completar o ensino médio, trabalhar a vida inteira, e apenas em alguns casos conquistar a casa própria e ascender socialmente.

O Brasil precisa de gente que não se contenta com pouco!”

Em que pese os avanços largos no rumo da democratização do acesso ao ensino superior no Brasil, é impossível fazer uma análise comprometida com uma sociedade justa fazendo vista grossa aos limites destes programas, que, no seu conjunto, ainda não representam uma verdadeira reforma universitária. E talvez seja justamente este o principal limite. Repensar o ensino superior na sua totalidade (seus objetivos, os currículos, os conteúdos, os métodos, o sistema de ingresso, a oferta de vagas, a assistência estudantil, a curricularização do tripé ensino-pesquisa-extensão, os investimentos, as concessões e o compromisso estatal de garantir tudo isso) é realizar uma das reformas de base que o Brasil precisa.

Já sabemos que o Prouni “salvou” uma geração inteira, e que esse milhão de estudantes não cabem ainda nos bancos das universidades públicas. Contudo, o Prouni, que garante o acesso para quem tem bom desempenho no ENEM e renda de até um salário mínimo per capita comprovada, não garante mais nada. Ainda que não seja cobrada a mensalidade, todos os demais preços na universidade privada condizem com a sua realidade elitizada, e, de forma alguma tem a ver com o salário mínimo comprovado pelos estudantes bolsistas, que, com algumas excessões dentre os cursos da saúde, não recebem nenhum outro auxílio para alimentação, cópias, transporte, moradia. E repito, são comprovadamente pobres.

Além dos bolsistas, nessa mesma condição se encontra um sem-número de estudantes que trabalham para pagar os estudos. Gente completamente desassistida pelo estado, que, via de regra, demora muito mais pra completar o curso e que quando se forma, além do canudo, recebe de presente uma impagável dívida contraída através de sistemas de financiamento, com facilidades burocráticas e juros absurdos.

A universidade privada é muito menos democrática que a pública. Isso se expressa no processo de admissão dos docentes e funcionários, nos conteúdos, nos métodos e na quase inexistência de mecanismos de participação dicente; no poder absurdo das mantenedoras, que lucram muito cumprindo mal o papel que o Estado lhes terceirizou. E por isso não é nenhum exagero denunciar a mercantilização do ensino superior no país, que é um jeito de dizer que esses espaços estão se convertendo, mais a cada dia, em empresas cujo o objeto é o estudante, o objetivo é o lucro e a missão é garantir legitimidade ideológica e base técnica ao capitalismo.

Um exemplo emblemático disso é o da PUC do Rio Grande do Sul, onde os estudantes não têm direito de sequer fazer movimento estudantil (a reitoria proíbe expressamente a panfletagem, a afixação de cartazes, a passagem em sala, as reuniões em salas fora do horário de aula). E se o estudante tiver alguma reclamação, deve se dirigir à ouvidoria e o procedimento é igual ao de uma empresa, onde o seu dono, neste caso o Reitor, jamais dá as caras.

E por falar em movimento estudantil...

A União Nacional dos Estudantes, entidade que representa os estudantes brasileiros, trata do tema de um modo superficial e contraditório. Muito preocupada em elogiar o governo pela ampliação do acesso à universidade, a direção majoritária da UNE se furta de fazer o debate sobre a regulamentação do ensino privado, no sentido de discutir e lutar com os e as estudantes por democracia, assistência estudantil, qualidade do ensino e até mesmo pelo fechamento das desqualificadas faculdades privadas, fabriquetas de diplomas, que não param de brotar no páis.

Além disso, a organização do movimento estudantil de base, nessas universidades, encontra mais dificuldades do que na pública. Em que pese haver um grande volume de demandas estudantis, que são o principal motor do movimento, são diversos os bloqueios que os estudantes que querem se organizar enfrentam. Se a maioria trabalha, essa maioria não tem tempo pra atuar no ME. As reivindicações, como já dito, são dirigidas ao reitor, escolhido pela tal mantenedora, que, sendo uma empresa, tem muito mais compromisso com a sua margem de lucro do que com a garantia de direitos. E na maioria dos casos, justamente pelos motivos anteriores, não há cultura de participação e de movimentação estudantil.

As principais bandeiras de luta do movimento estudantil nas instituições privadas, com base na nossa realidade da PUCRS e outras que acompanhamos por aí, são: pela revogação ou o não-aumento das mensalidades, por mais bolsas de iniciação científica e mais pesquisa e extensão de verdade, por assistência estudantil (transporte, moradia, escola de educação infantil, descontos e alimentação de qualidade) e pela regulamentação do ensino superior. Contudo, a principal reivindicação que deve orientar a luta dos e das estudantes deve ser a democratização da universidade. O fato de se tratar de iniciativa privada não pode lhes dar o direito de conservar uma estrutura medieval, ou monocrática. Quando os e as estudantes participam democraticamente das tomadas de decisões em todas as instâncias da universidade, ao invés de objetos, passamos a ser sujeitos da educação.

Por Uma Universidade Popular!